sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

P5 - Eu (nós) e o serviço militar - O trauma da ida para a Madeira (Carlos Vinhal)

Funchal à Noite. Imagem da internete, com a devida vénia ao seu autor


Eu (nós) e o serviço militar

O serviço militar acarretava muitas alterações à vida dos mancebos.

Quer ainda estudassem, quer já tivessem os seus empregos, as contrariedades eram mais que muitas, às quais não havia modo de fugir, a não ser fugir, literalmente.

Num país onde não abundava o dinheiro, a maioria dos incorporados só assim tinha hipóteses de vir a conhecer outros mundos e outras vivências. Os quartéis eram normalmente longe das suas terras natal, proporcionando constantes deslocações entre vilas e cidades desconhecidas até então.

Pela minha parte, confesso, o mais longe onde fora antes da tropa, tinha sido uma ida a Fátima, aos dez anos, com os meus pais. Para norte tinha ido numa excursão, aos dezoito anos, até à fronteira minhota, mais propriamente àquela corda, Melgaço, Monção e Valença. Relativamente cedo comecei a trabalhar sem direito a férias. E o dinheiro não abundava.

Em Abril de 1969, a incorporação na recruta proporcionou-me, e a mais uns quantos conterrâneos, uma ida de comboio até às Caldas da Rainha. Do Porto até lá tivemos que usar três linhas diferentes. Saímos de S. Bento (ou Campanhã?) à meia-noite e chegámos às Caldas cerca das 9h30 da manhã.

Seguiu-se Vendas Novas, em Julho, para tirarmos a especialidade, num Alentejo longínquo, de onde nem sequer era possível vir ao Porto aos fins-de-semana. Fomos para lá directamente das Caldas, de comboio até Lisboa (Estação do Rossio), onde saímos para atravessar o Tejo de barco. No outro lado (Barreiro) apanhámos outro comboio que nos levou, muito devagarinho, até à Escola Prática de Artilharia. A Estação de Vendas Novas era na mesma rua do Quartel.

Acabada a especialidade, em 18 de Setembro, durante umas curtas férias, foi com espanto que recebi em casa um postal do Exército informando-me que tinha sido colocado no BAG-2, mas que ia em diligência para o GACA-2, Torres Novas, onde me tinha de apresentar no dia 13 de Outubro. O local do BAG-2 não era referenciado.

Um pouco sobressaltado por nunca ter ouvido falar em tal unidade, fui ao café, que era na época o ponto de encontro privilegiado da malta nova, quase todos futuros militares, já nas fileiras ou ex-militares, na esperança de que algum amigo me dissesse onde ficava aquele quartel.

Alguém me disse que tinha um vizinho colocado no BAG-1, que era nos Açores. Assim, o BAG 2 poderia ser também naquele arquipélago ou no da Madeira. Confesso que fiquei sem pinga de sangue, ir para tão longe, quando tinha como certa uma mobilização para o ultramar?

No dia indicado apresentei-me em Torres Novas, era agora um mestre em viagens de comboio, carregando as trouxas às costas. No fundo tinha a esperança de que ficaria uns tempos por ali. Bem enganado estava porque logo no dia 20 transportaram-me, e a mais uns quantos, numa viatura militar com destino à Estação de Caminho-de-ferro local para apanharmos o comboio com destino a Tancos, a fim de frequentarmos um curso de minas e armadilhas. De mal a pior como diria um pessimista militante.

Chegámos de noite, não dando para perceber logo que aquilo era um autêntico deserto. Da Estação até ao Casal do Pote, destacamento da EPE, onde ficámos instalados e onde seria ministrada a instrução, foi um bom bocado, sempre a subir, carregando as nossas coisas.

Instalações miseráveis onde passámos um frio de rachar, tínhamos como companheiros de cama dezenas e dezenas de percevejos que nos chupavam o sangue até se fartarem. Como o pequeno-almoço era servido no Quartel principal, quase ninguém ia tomá-lo porque nos tínhamos de deslocar a pé, não compensando o que se ingeria com o que se gastava em energia a fazer o percurso de ida e volta.

Seis semanas passadas, fim do curso e diploma de aproveitamento entregue com pompa e circunstância. No dia 28 de Novembro deixava a EPE, regressava a casa mas na mão tinha já um “vocher” com a oferta de uma viagem no navio Funchal, marcada para o dia 9 de Dezembro, com destino à cidade com o mesmo nome, capital da Ilha da Madeira.

Feito um rápido balanço, no espaço de 8 meses tinha conhecido, Caldas da Rainha, Lisboa, Vendas Novas, Torres Novas, Tancos e outras localidades. Tinha feito imensas viagens de comboio, tudo oferta de Estado, e algumas de autocarro e comboio por minha conta, quando podia vir à santa terrinha gozar os fins-de-semana. Esperava-me agora o Funchal e, futuramente, a Guiné.

No dia 8 de Dezembro de 1969, à hora aprazada, 16 horas, embarquei, e mais uns quantos sortudos, no Cais Rocha Conde de Óbidos, no navio Funchal. Estreia absoluta esta viagem por mares nunca dantes por mim navegados. Sabíamos que a Madeira era de uma beleza rara pelo que a expectativa era muita.

A viagem foi maravilhosa, o navio Funchal fazia a ligação marítima regular entre Lisboa e as Ilhas insulares, mas o melhor estava para vir, a chegada à baía do Funchal, que aconteceu por volta das oito e meia da noite do dia 9.

Em dias da minha vida jamais esquecerei aquela vista da encosta sul da ilha, mal definida pelo escuro da noite, pintalgada por milhares de pontos de luz. Rente ao mar, adivinhavam-se as avenidas da cidade, apinhadas de gente e viaturas, que se deslocavam numa aparente desordem, deixando riscos de luz que atravessavam a noite até penetrarem nos nossos olhos.

Confesso que apesar da minha tristeza por estar muito longe da família, afinal estava quase no “fim do mundo”, aquela maravilhosa paisagem nocturna, que nunca imaginara poder existir, começou a despertar em mim uma certa paz de espírito. Ansiava já pelo desembarque e por poder conhecer por dentro, tanto quanto me fosse possível, aquela ilha. Como seria a sensação de saber que estava rodeado de água por todos os lados?

Em Dezembro, no continente e no norte em particular, o frio faz-se sentir, obrigando ao uso de agasalho apropriado, logo entre outra roupa civil que levei na mala, ia uma gabardina.

Ao sair do navio, nem queria acreditar, a temperatura era amena apesar de já serem para lá das 21 horas.

Viaturas militares esperavam-nos no cais para nos levar ao misterioso BAG-1 que finalmente iria conhecer. Logo naquela hora fiquei a saber que a Madeira tinha estradas íngremes. O Quartel era muito pequeno, a guarnição era equivalente à de uma Companhia, como constatei no dia seguinte, acantonado em S. Martinho, localidade relativamente próxima da cidade mas já bem lá no alto.
BAG-2 - S. Martinho - Funchal - Madeira.
Foto: © Carlos Vinhal (1985)

A nossa chegada coincidiu com os últimos dias de instrução dos militares madeirenses ali aquartelados, e que iriam fazer parte das duas primeiras Companhias a formar naquele quartel, uma com destino a Angola e a outra à Guiné. Para o efeito, o quartel iria mudar a sua designação, deixando de ser Bateria de Artilharia de Guarnição, passando a chamar-se Grupo de Artilharia de Guarnição.

Decorreram os últimos dias de instrução, seguidos da semana de campo passada no Caniçal, para onde nos deslocámos a pé. No fim, os militares foram dados como prontos. Seguir-se-iam uns dias de férias de Natal e em Janeiro começaria o treino específico com vista à preparação para a ida para África.

O Comandante autorizou-nos, particularmente, a virmos ao Continente passar o Natal e o Ano Novo com a família. Prometemos regressar no dia 4 de Janeiro de 1970, o ano de todos os acontecimentos.

Aqui tenho nova estreia, a minha primeira viagem de avião, esta paga por mim. Era sábado, dia 20 de Dezembro, acabada a instrução, fomos para o Aeroporto do Funchal a fim de apanhar o avião para Lisboa. Na capital ainda me esperava uma longa viagem de comboio até ao Porto. Já em Lisboa pedi ao taxista que me levasse rápido a Santa Apolónia para tentar apanhar um comboio que partiria cerca das 20 horas mas ali chegado vi o comboio partir. Seguir-se-ia uma longa espera até à meia-noite e uma viagem de mais de 7 horas até Campanhã. Depois de ter saído cerca das 17 horas do Funchal, cheguei a casa às 8h30 da manhã de domingo, estavam os meus pais na missa. Quando chegaram e me viram sentado à porta, nem queriam acreditar.

Em Janeiro, passadas as “festas”, foi o regresso ao GAG-2 para o recomeço da instrução. Foram distribuídos os homens por cada Companhia, CART 2731, destinada a Angola, e CART 2732, a minha, destinada à Guiné.

Como cada Companhia é composta por 4 pelotões, formados estes, logo ali começaram a criar-se os laços de camaradagem e espírito de grupo, que se prolongaria na Guiné, e seguramente em Angola, e que ainda hoje perdura em alguns casos.

Volvidos 50 anos após termos destroçado em Lisboa definitivamente das fileiras, apesar de todos os sacrifícios passados, acho que enriqueci a minha vida com a ida para o Funchal e, posteriormente, ali termos formado a CART 2732, composta na sua maioria por soldados e cabos da bela Ilha da Madeira. Assim tive a oportunidade de conhecer e conviver com estes homens, dignos representantes de um povo fantástico, valente e patriota.

Carlos Vinhal
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3 comentários:

  1. Caro Amigo Carlos Vinhal!
    A descrição pormenorizada que fizeste sobre ti e sobre o nosso serviço militar, salvo pequenas alterações que têm a ver com o facto de não haver pessoal (camaradas) madeirense com graduação superior a Cabo, aplica-se a todos nós. Eu revi-me no que relataste e, se fosse eu a escrever, pouco alteraria. É uma descrição fiel do que vivemos, das vicissitudes passadas, da perda da nossa liberdade, das saudades da família, da perda dos nossos empregos, do abandono forçado do nosso percurso escolar, da precariedade do dia-a-dia, com destaque para a alimentação e para o alojamento, do medo constante e do perigo sempre iminente, do tempo excessivo de serviço militar, em terras não aconselháveis, na altura, a eventuais visitas dos familiares, etc., etc..
    Obrigado por me relembrares pelo que passei (passámos), embora nenhum de nós se esqueça de tamanha privação.

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    1. Por lapso, esqueci-me de agradecer as palavras amáveis, que dirigiste aos camaradas madeirenses, como sendo um povo fantástico, valente e patriota.
      É óbvio, também, que, como madeirense, tenho que referir o humanismo, a humildade, a solidariedade e o carinho demonstrado por todos os furrieis (sargentos) e oficiais que integraram a nossa companhia. É caso para dizer que, não obstante as imensas privações, todos contribuímos para sermos, dentro do possível, felizes.

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  2. Camarada, por esquecimento não assinaste os comentários (Inácio?). Na nossa Companhia não havia graduados madeirenses mas na minha recruta, e não só, tive camaradas madeirenses e açorianos, futuros furriéis milicianos. Quanto às minhas palavras que referes como amáveis, não são elogios, são aquilo que senti e sinto. Digo muitas vezes que os nossos compatriotas ilhéus não se deixam limitar pelo mar que os cerca, pelo contrário, o mar é a porta de saída para a procura de uma vida melhor. E, como militares, os meus camaradas madeirenses foram verdadeiros heróis, tivemos muitos feridos em combate e duas mortes mesmo no fim da nossa comissão. O asfaltamento da estrada entre o Bironque e o K3 implicou da vossa parte muito sacrifício com saídas diárias, estadias em destacamentos sem condições, colunas constantes para Mansoa e para o K3, emboscadas nocturnas e todas as vicissitudes que uma unidade de quadrícula tem de aguentar. Falo por mim, foi uma honra fazer parte da madeirense CART 2732.
    Recebe um abraço extensivo a todos os meus camaradas madeirenses espalhados pelo mundo.
    Carlos Vinhal

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