sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

P59 - Feliz Natal (João Gouveia, ex-1.º Cabo At Art da CART 2732)

Espectáculo de fogo-de-artifício da Madeira
Com a devida vénia a Fugas.Viagens


Mensagem do nosso camarada de armas João Gouveia  (ex-1.º Cabo da 2.ª Secção do 3.º Pelotão da nossa CART 2732) com data de hoje, 21 de Dezembro de 2018:

Abordar o Natal num cenário de guerra é um tanto pictórico do nosso imaginário. Natal há sempre como sempre há o nascimento de Jesus e a ressurreição de Cristo, está na raiz da nossa cultura, com mais de dois mil anos. Mas o Natal na guerra é como um ausente-presente.

Em Mansabá não me recordo de ter visto alusões ao Natal, salvo um pequeno símbolo alusivo à quadra feito pelo Samuel (já falecido) no bunker, “ abrigo da bola”. Sem imagens de “santos”, sem velas nem orações.

O Natal na Guiné (dois natais, 1970 e 1971) fazia aumentar a tensão da guerra. Ou seja, havia a sensação que o inimigo muçulmano atacasse na época festiva dos cristãos, que eram as tropas portuguesas, crentes ou agnósticas. De um lado católicos, do outro lado muçulmanos. Até que ponto a religião influenciava a guerra na Guiné, não sabemos, mas sabemos que não dava tréguas, pelo contrário.

Foi há quase meio século! O que lá se passou… só quem lá esteve sabe e guarda na sua inapagável memória. A distância num tempo que nos faz viver um passado-presente.

Um Santo Natal para todos, extensivo aos familiares, e que a saúde e a felicidade os acompanhem em todos os momentos.

Abraço, de Lisboa para todos os colegas (não simpatizo com o vocábulo camarada) da CART 2732.
Aos que tiverem oportunidade, não deixem de saborear o bolo de mel, os licores caseiros e a inimitável poncha com aguardente de cana sacarina.
O fogo-de-artifício (o melhor do mundo na passagem de ano, segundo o Guinness) pode ser visto no canal 188 da Nós ou Meo, à meia-noite do dia 31 de Dezembro.

Boas Festas, Feliz Ano Novo.
____________

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

P58 - Natal, guerra e mortes (João Gouveia, ex-1.º Cabo Atirador da CART 2732)

Mensagem do nosso camarada João Gouveia  (ex-1.º Cabo da 2.ª Secção do 3.º Pelotão da nossa CART 2732) com data de hoje, 10 de Dezembro de 2018:

Boa tarde,
Um breve texto sobre uma data.
Com opção de publicação, deixo ao v/critério
Abraço
João Gouveia

********************

Natal, guerra e mortes

Está a fazer anos que a CART 2732 sofreu a mais sangrenta emboscada das muitas que enfrentou e travou na Guiné. Foi a 6 de dezembro de 1971, no percurso entre Mansoa e Mansabá – zona de Mamboncó –, conhecido pelo “corredor da morte”, que o inimigo infligiu um ataque arrasador cujo poderio esteve à beira de causar um massacre sem precedentes.

Mal começou o ataque, o inimigo operou de uma forma tão rápida e com uma frente de tal modo poderosa que nós reagimos, sem nada ver, enquanto os guerrilheiros do PAIGC sabiam onde estávamos. Rapidamente ficámos em desvantagem, apesar da nossa pronta reação, um tanto às-cegas. Foram intensos momentos (20 minutos!) debaixo de fogo.

É das poucas imagens que retenho da guerra na Guiné: Ao meu lado, vi o José do Espírito Santo Barbosa (Soldado atirador) e o José Manuel Vieira (1.º Cabo atirador), deitados na vala em gemidos dolorosos. Atrás de mim, um jovem negro que tinha pedido boleia em Mansoa, jorrava sangue pela cara com olhar de terror. De relance vi um carro a arder. Naquele pedaço de vala só eu estava 100 % vivo! Utilizei todas as cartucheiras e fiquei em balas. Os “turras” continuavam a metralhar. Pela primeira vez na vida ocorreu-me a imagem da morte. Tive consciência da vantagem do inimigo sobre nós. A G3 e a granada não eram suficientes para vencer cerca de 50 guerrilheiros conhecedores da “zona” e bem equipados, com Kalashnikov's, granadas, morteiros e rocket´s. Tenho também a impressão que foram os “Fiat´s”, aviões caça bombardeiros, que nos salvaram de um massacre mais avassalador. Com a chegada dos “Fiat´s”, o inimigo recuou, fugiu, e nós deixamos de estar debaixo do fogo mortal.

Tivemos sorte? Vim a saber, pelo blogue da Cart 2732, que as NT (Nossas Tropas), num balanço final, sofreram: 2 mortos, 11 feridos graves e 8 feridos ligeiros, bem como dois carros (Unimog’s) destruídos. Milagre para um cenário reconhecidamente superior do inimigo. Fomos heróis!? Os anjos vieram do céu com o nome de “Fiat´s”.

NB: Em Agosto de 1971, vim de férias à Madeira, na mesma data veio o camarada Barbosa. Saímos de Bissau para Lisboa, na capital fomos à Feira Popular, e na manhã do dia seguinte viajamos para o Funchal. No regresso encontrámo-nos no Aeroporto da Madeira… foi a última vez que viu-o a receber abraços de familiares. Cerca de quatro meses depois morria em combate. Foi louvado… Para nada! Foi mais uma vítima da guerra na quadra natalícia. Ele, Barbosa, que pretendia emigrar para o estrangeiro.

UM SANTO NATAL PARA TODOS
Abraço,
João Gouveia
____________

Notas do editor:

Soldado Atirador Manuel Vieira, em primeiro plano, de pé, morto na emboscada de 6 de Dezembro de 1971.

José do Espírito Santo Barbosa, Soldado Atirador, morreu em 14 de Dezembro de 1971, no HM 241 de Bissau, vítima de ferimentos recebidos em combate no dia 6 de Dezembro.

- Vd. postes:

P37 - As nossas datas (4): Lembrando o nosso camarada Manuel Vieira, falecido no dia 6 de Dezembro de 1971
e
P38 - As nossas datas (5): Lembrando o nosso camarada José do Espírito Santo Barbosa, falecido no dia 14 de Dezembro de 1971