sábado, 2 de agosto de 2014

P50 - Texto publicado no Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

MEMÓRIAS DE MANSABÁ

NO DIA EM QUE MORRI

Carlos Vinhal

Domingo. Para fazer algo de diferente, sempre o que as actividades operacionais permitissem, era dia de vestir à civil, jogar ténis de mesa pela manhã e após o almoço dar um pequeno passeio pela tabanca. Às vezes até se batiam umas chapas para mandar à família e mostrar que a guerra não era aquilo que se dizia. Então não se via nas fotos?!

O pessoal da tabanca, acho que também se tinha adaptado aos nossos hábitos. As pessoas corriam em menor número à enfermaria civil e militar, e as nossas lavadeiras não entregavam roupa lavada. A população, pela manhã, assistia com respeito ao hastear da Bandeira Nacional em frente ao Posto Administrativo, cerimónia que só acontecia ao domingo. Os homens conversavam ou deambulavam pela tabanca ouvindo música ou os relatos de futebol da Metrópole, em alto som, como era hábito, naqueles portáteis enormes por vezes carregados ao ombro.

Depois de um almoço melhorado, bem regado com uma cervejinha geladinha, tomado o digestivo, normalmente um VAT 69 ou um White Horse, como era hábito lá fomos arejar o fato domingueiro.

Tínhamos aprendido na Doutrina que o domingo era dia do Senhor, dia de descanso, dia de paz e amor.
As diversas actividades quotidianas nem sempre permitiam o contacto directo com a população. Dois dedos de conversa aqui, um piropo a uma bajuda ali, por que não até uma inocente foto com algumas delas, e assim se ocupava algum tempo. 

 Interior do quartel de Mansabá, 28 de Novembro de 1971 - O Fur Mil Mec Auto Dias e eu

Naquele domingo, regressava o grupo já em direcção à porta de armas, ainda em plena avenida de acesso ao quartel, quem vinha de Cutia, quando rebenta um fogachal enorme.
O quartel estava a ser atacado em pleno dia, o que era extremamente raro.

Armas pesadas e ligeiras pareciam instaladas junto ao arame farpado, quando não, já do lado de dentro.
Começámos a correr o mais que podíamos em direcção aos nossos aposentos para nos armarmos e ocuparmos os nossos postos ou pura e simplesmente irmos para o abrigo mais próximo.
Lembro-me que ultrapassei a porta de armas, antecedido por uns quantos camaradas e, quando a escassos vinte metros da porta do meu quarto, situado precisamente no enfiamento da entrada do quartel, sinto um impacto violento nas costas.

Caio de bruços, curiosamente sem dores. Acho que se apaga uma luz ao mesmo tempo que sinto uma paz como nunca tinha sentido.

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O quarto dos pesadelos

Sobressaltado, dou um pulo na cama e desperto.
Não era domingo, não era de dia, nem felizmente o quartel estava a ser assaltado.
Tento na escuridão verificar que o meu camarada Dias não se tenha apercebido do meu pesadelo. O silêncio reinava no quarto. Ainda bem.

Lá fora, na noite escura e misteriosa, alguns dos meus camaradas velavam pela nossa relativa segurança. Bem hajam.
Esperei acordado pelo romper do dia já que não mais consegui adormecer.

Carlos Vinhal, 
ex-Fur Mil Art MA, 
CART 2732, 
Mansabá, 1970/72

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