segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

P58 - Natal, guerra e mortes (João Gouveia, ex-1.º Cabo Atirador da CART 2732)

Mensagem do nosso camarada João Gouveia  (ex-1.º Cabo da 2.ª Secção do 3.º Pelotão da nossa CART 2732) com data de hoje, 10 de Dezembro de 2018:

Boa tarde,
Um breve texto sobre uma data.
Com opção de publicação, deixo ao v/critério
Abraço
João Gouveia

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Natal, guerra e mortes

Está a fazer anos que a CART 2732 sofreu a mais sangrenta emboscada das muitas que enfrentou e travou na Guiné. Foi a 6 de dezembro de 1971, no percurso entre Mansoa e Mansabá – zona de Mamboncó –, conhecido pelo “corredor da morte”, que o inimigo infligiu um ataque arrasador cujo poderio esteve à beira de causar um massacre sem precedentes.

Mal começou o ataque, o inimigo operou de uma forma tão rápida e com uma frente de tal modo poderosa que nós reagimos, sem nada ver, enquanto os guerrilheiros do PAIGC sabiam onde estávamos. Rapidamente ficámos em desvantagem, apesar da nossa pronta reação, um tanto às-cegas. Foram intensos momentos (20 minutos!) debaixo de fogo.

É das poucas imagens que retenho da guerra na Guiné: Ao meu lado, vi o José do Espírito Santo Barbosa (Soldado atirador) e o José Manuel Vieira (1.º Cabo atirador), deitados na vala em gemidos dolorosos. Atrás de mim, um jovem negro que tinha pedido boleia em Mansoa, jorrava sangue pela cara com olhar de terror. De relance vi um carro a arder. Naquele pedaço de vala só eu estava 100 % vivo! Utilizei todas as cartucheiras e fiquei em balas. Os “turras” continuavam a metralhar. Pela primeira vez na vida ocorreu-me a imagem da morte. Tive consciência da vantagem do inimigo sobre nós. A G3 e a granada não eram suficientes para vencer cerca de 50 guerrilheiros conhecedores da “zona” e bem equipados, com Kalashnikov's, granadas, morteiros e rocket´s. Tenho também a impressão que foram os “Fiat´s”, aviões caça bombardeiros, que nos salvaram de um massacre mais avassalador. Com a chegada dos “Fiat´s”, o inimigo recuou, fugiu, e nós deixamos de estar debaixo do fogo mortal.

Tivemos sorte? Vim a saber, pelo blogue da Cart 2732, que as NT (Nossas Tropas), num balanço final, sofreram: 2 mortos, 11 feridos graves e 8 feridos ligeiros, bem como dois carros (Unimog’s) destruídos. Milagre para um cenário reconhecidamente superior do inimigo. Fomos heróis!? Os anjos vieram do céu com o nome de “Fiat´s”.

NB: Em Agosto de 1971, vim de férias à Madeira, na mesma data veio o camarada Barbosa. Saímos de Bissau para Lisboa, na capital fomos à Feira Popular, e na manhã do dia seguinte viajamos para o Funchal. No regresso encontrámo-nos no Aeroporto da Madeira… foi a última vez que viu-o a receber abraços de familiares. Cerca de quatro meses depois morria em combate. Foi louvado… Para nada! Foi mais uma vítima da guerra na quadra natalícia. Ele, Barbosa, que pretendia emigrar para o estrangeiro.

UM SANTO NATAL PARA TODOS
Abraço,
João Gouveia
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Notas do editor:

Soldado Atirador Manuel Vieira, em primeiro plano, de pé, morto na emboscada de 6 de Dezembro de 1971.

José do Espírito Santo Barbosa, Soldado Atirador, morreu em 14 de Dezembro de 1971, no HM 241 de Bissau, vítima de ferimentos recebidos em combate no dia 6 de Dezembro.

- Vd. postes:

P37 - As nossas datas (4): Lembrando o nosso camarada Manuel Vieira, falecido no dia 6 de Dezembro de 1971
e
P38 - As nossas datas (5): Lembrando o nosso camarada José do Espírito Santo Barbosa, falecido no dia 14 de Dezembro de 1971

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