Por Inácio Silva
Durante os 23 meses de permanência em Mansabá, todos os dias, a qualquer hora, era possível verificar-se um confronto, repentino e inesperado, entre as forças do PAIGC e as nossas tropas, onde quer que elas estivessem: fosse numa operação militar programada, numa batida de zona, numa saída para o mato, à noite, numa coluna militar ou quando estivéssemos no quartel, acordados ou a dormir. Fosse, ainda, com a colocação de minas antipessoais ou anticarro, nos trilhos ou estradas por onde haveríamos de passar.
Foram setecentos dias, dezasseis mil e oitocentas horas de permanente e absoluto alerta, com os olhos e ouvidos bem abertos, tentando perscrutar um movimento suspeito, um barulho, um estrondo, numa vasta área de mato, floresta e bolanha, em todo o perímetro do Quartel.
Diga-se, em abono da verdade, que a iniciativa dos ataques, partia, geralmente, dos homens do PAIGC, já que as tropas portuguesas estavam sediadas nos quartéis, cujas localizações eram suas, sobejamente, conhecidas, sendo, portanto, relativamente fácil localizá-las e desencadearem ataques às nossas guarnições.
A nós competia ocupar o território e defender as populações e as autoridades administrativas. Ao PAIGC competia marcar a sua presença em todo o território da Guiné, exercendo a guerrilha, lançando ofensivas, sem data nem hora marcadas, tentando causar baixas nas tropas portuguesas, com o objectivo de as desgastar e desmoralizar.
Num desses dias de 1970 (12 de Novembro), pelas 19H30, eu e alguns camaradas, após o jantar, já noite escura, temperatura amena, subimos, como habitualmente, para a cobertura do abrigo designado por Mancarra, para passar o tempo, o mais descontraidamente possível, até que o sono chegasse, estabelecendo, entre nós, diálogos aleatórios ao sabor de temas, ao acaso.
A minha maior preocupação eram os mosquitos que me rodeavam insistentemente, que se atiravam a mim como gato a bofe, não parando de me autoflagelar com palmadas para evitar que me picassem, a maior parte das vezes, em vão.
Sem conseguirmos ver nada que estivesse para além da periferia do quartel, a vinte metros de nós, cercada de arame farpado e iluminada pela energia produzida por um gerador, alimentado a gasóleo, cujo barulho era audível no local, de repente, a iluminação apagou-se. Tratava-se, sabíamos nós, de um procedimento habitual, pois era necessário fazer descansar aquele gerador e colocar outro em funcionamento.
Já não me lembro durante quantos segundos é que estivemos às escuras; penso que não terá ido além dos 30 ou 40 segundos. Nesse hiato decidi, sem nenhuma razão aparente, vociferar impropérios, na direcção do fosso negro, de nossos pés, até à mata.
O som das nossas vozes emitido, em absoluto silêncio nocturno, era perfeitamente audível a algumas centenas de metros. Fui acompanhado por outros camaradas, na mesma ladaínha: - Está na hora, seus filhos da p..., ataquem agora, aproveitem, seus cobardes.
Estas frases iam sendo repetidas, enquanto se vivia aquele momento de absoluta escuridão.
Alguns dos camaradas presentes nesta foto dormiam no abrigo da Mancarra, localizado nas suas costas. Inácio Silva sentado e encostado ao mini monumento que os defendeu dos estilhaços dos morteiros. A seta indica o sítio onde estavam quando começou o ataque.
Ainda estávamos naquele exercício provocatório, quando, inesperadamente, rompeu da escuridão, na nossa direcção, uma rajada de Kalashnikov (PPSH), conhecida por costureirinha pelo som característico, estridente que provocava, dando uma sensação de proximidade, seguida de lançamento de granadas de morteiro.
De imediato, saltámos da cobertura do abrigo, para o solo, tendo caído, nesse momento, três granadas de morteiro, perto de nós. A sorte esteve connosco, uma vez que as granadas caíram e rebentaram por detrás de um pequeno monumento, erigido pelos camaradas da Companhia que ali estivera antes de nós, a CCAÇ 2403, protegendo-nos.
Os círculos indicam os buracos feitos pelas três granadas de morteiro que marcaram o início do ataque.
Num ápice, o potencial de fogo por parte do PAIGC, originário de uma larga zona, em meia-lua, desde a pista de aviação, em terra batida, até ao abrigo da Mancarra, aumentou, atingindo várias zonas do quartel. Era possível ouvirem-se tiros de espingarda, de metralhadoras, e rebentamentos de granadas de morteiro, de RPG2 e de canhão sem recuo...
Percebi, logo, que estávamos em presença de uma grande operação militar do PAIGC que, das duas uma: ou respondíamos de imediato e com os todos os meios ao nosso alcance, ou poderíamos assistir a uma invasão das nossas instalações, com todas as consequências desastrosas que isso implicava.
Cada um dos camaradas que ali se encontravam, se dirigiu para o seu posto de combate e de defesa das instalações. Todos os postos avançados começaram a reagir àquele incessante matraquear mortífero: as nossas, espingardas G3, metralhadoras pesadas, metralhadoras ligeiras, morteiros 81mm e os obuses, em uníssono, desempenharam um papel absolutamente imprescindível na nossa defesa e foram, sem qualquer espécie de dúvida, a nossa salvação.
No referido abrigo da Mancarra, a meu cargo, estava uma metralhadora pesada BREDA, alimentada por lâminas de vinte balas de 8x59mm, mal posicionada em relação à frente de fogo inimiga. Havia que a deslocar para a posição correcta, sendo necessário dois militares para o efeito. Porém, o seu municiador, já há alguns dias que estava doente, acamado na enfermaria do quartel e eu encontrava-me, ali, sozinho.
Por segundos, fiquei sem saber o que fazer. A primeira reacção foi rodar a metralhadora, o máximo possível, para a frente de fogo inimiga, dando indicação aos atacantes de que a minha zona estava protegida.
Efectuei vários disparos, lâmina a lâmina, até que a BREDA encravou! Preocupado com a ausência de fogo naquele posto, recolhi todas as espingardas G3 dos camaradas que haviam saído para guarnecer os seus postos de combate e trouxe-as para junto de mim.
Tiro a tiro, fui descarregando as várias G3, mantendo, ali, uma presença de fogo. Ao dar o último tiro, fui confrontado com novo dilema: o que fazer a seguir? Abastecer os carregadores das G3 ou tentar desencravar a metralhadora e mudá-la para a frente de fogo? Qualquer destas tarefas implicaria numa paragem, absolutamente desastrosa, incompatível com a situação que estávamos a viver.
A tremer de medo, por pensar que poderia ser apanhado à mão, pelo inimigo, decidi desmontar a metralhadora. Ainda muito quente devido aos disparos a que foi sujeita, queimei as mãos ao desmontar a parte frontal, onde se encontra o cano e, esforcei-me, sem condições, por levá-la para a melhor frente de fogo. Colocada nova lâmina, lá recomeçou a funcionar. Depois, muitas outras se seguiram. Os meus dedos polegares, de empregado forense, já não conseguiam suportar as dores provocadas pelo trepidar dos disparos. Olhei para eles e vi que estavam duas enormes bolhas de sangue.
Continuei, apesar de tudo...
O meu posto era fixo e estava denunciado. De repente, oiço um assustador estrondo, acompanhado de uma labareda e de uma luz intensa, que me deixa absolutamente atordoado, surdo, a zumbir, parecendo que o couro cabeludo iria saltar. Fico sem reacção. Sinto uma impressão no meu sobreolho direito, passo a mão e o sangue anuncia um ligeiro ferimento. Nada de grave, felizmente. Era mais grave o meu estado de espírito e a minha desorientação devido ao gigantesco estrondo, amplificado pela caixa de ar onde me encontrava! Parecia encontrar-me numa gruta com milhões de morcegos a farfalhar.
Pensei! É agora que vou ser apanhado. Estava só e indefeso. Confiava nos meus camaradas que, algures, estavam a reagir estoicamente àquele gigantesco ataque. Não se ouviam vozes nem gritos, apenas os estrondos das bombas. Parecia ser o apocalipse!
Passaram-se quarenta e cinco longos minutos até voltar o silêncio! Havia que recompor as forças e o estado de espírito. Ver os estragos, abastecermo-nos de munições e preparar as armas para novo eventual tiroteio. Em teoria, ele poderia ocorrer noutra frente, no momento imediato!
Para acalmar, psicologicamente, as nossas tropas, o Comando Geral, enviou um bombardeiro T6, que sobrevoou, algumas vezes, as supostas zonas onde o IN se havia posicionado para atacar, certamente, já em debandada.
No dia seguinte, logo pela manhã, quis saber o que havia causado aquele estrondo que me tinha deixado prostrado. Foi uma granada de RPG, lançada pelos militares do PAIGC, na direcção das chamas da BREDA, que embateu na parede do abrigo, junto ao vértice inferior direito da fresta onde trabalhava a metralhadora, rebentando a cerca de um metro de mim.
É possível ver no círculo, o desbaste da parede efectuado pelo impacto e rebentamento da granada. Foi por um triz que ela não penetrou no abrigo.
Feito o balanço, verificou-se ter havido um morto e quatro feridos nas tropas portuguesas (milícias locais) e 14 mortos e 45 feridos, na população.
Quanto aos estragos materiais, é de referir a destruição da enfermaria, de uma caserna e de algumas casas da população.
No que a mim diz respeito, trago comigo, até hoje, uma deficiência auditiva provocada pelo referido rebentamento, revelada em todos os exames audiométricos que efectuei (mais de uma dezena), no âmbito da Medicina do Trabalho da minha empresa, caracterizada pela impossibilidade de discernir determinadas gamas de frequência, situação que é totalmente desconhecida das entidades militares, não fazendo, pois, parte das estatísticas.
Pergunta-se, agora, porquê tudo isto?
O ser humano é único: pensa, ama, odeia, ri, chora, raciocina mas, por vezes, lamentavelmente, reage irracionalmente... e a guerra é um acto irracional!
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